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26/03/2010

A Prova Ilícita no Direito Moçambicano - Breves Notas

«São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na sua vida privada e familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações».Art. 65, n.º 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM)

O Direito Moçambicano, na senda da maioria dos sistemas jurídicos contemporâneos, consagra constitucionalmente o princípio da proibição da prova ilícita, esta compreendida como toda a prova obtida por meios ilícitos ou obtida com violação de normas protectoras de direitos individuais do cidadão. Dir-se-á que se trata de um direito fundamental jurisdicionado: o direito que todo o cidadão tem de não ver produzida contra si uma prova ilícita ou obtida ilicitamente.

Conforme colocado por Linara Oeiras Assunção, o conceito de prova ilícita é muito amplo, alcançando aquela prova que choca com o ordenamento jurídico, situado no plano constitucional, mas também compreendendo o plano infraconstitucional, onde se situa a lei ordinária, o costume e os princípios gerais do Direito.

O processo judicial, seja ele cível ou penal, pode ser conceituado como uma sequência de actos, destinados à justa composição, por um órgão de autoridade imparcial (o Tribunal), de um conflito de interesses ou litígio.

Efectivamente, dentro de uma sociedade, cada indivíduo representa um conjunto de interesses cuja prosecussão choca, não raras vezes, com interesses divergentes e frequentemente conflitantes, de outros indivíduos. As partes em conflito não são de nenhum modo os sujeitos mais indicados para colocar fim ao litígioque as opõe, dado o facto óbvio de que a posição de cada uma delas não é imparcial. Assim se levanta a necessidade de «entregar» o litígio ou o conflito de interesses a um terceiro, que decidirá de forma imparcial e segundo os ditames do valor de Justiça predominante naquela sociedade. O Estado, na qualidade de terceiro, chama a si esse papel, exercendo-o através dos Tribunais.

O tribunal, cuja actividade é exercida sob o manto da Lei, deve, no desenrolar do processo judicial, colher os elementos que o auxiliarão a formar o seu convencimento na orientação que acabará plasmada na decisão final, a Sentença.

Essa «colheita de elementos» pode ser conceituada como a «actividade probatória» ou seja, o conjunto de actos levados a cabo pelos sujeitos processuais (partes e tribunal) com o objectivo de sustentar as suas posições em juízo. Porque quem alega um facto deve oferecer ao Tribunal os elementos que sustentam essa alegação, ou seja, deve provar o que afirma.

Conforme acima mencionado, sob o tribunal pende o dever de realizar uma justa composição do litígio afim de que no culminar do processo, o conflito de interesses seja decidido de modo justo, legal e em com base em todo o material trazido ao pleito.

Ora, o desejo de se alcançar a «verdade última» no processo pode levar ao entendimento de que todo e qualquer meio pode ser usado desde que o mesmo tenha como objectivo o esclarecimento dos factos controvertidos, a demostração da verdade das alegações e a demonstração da realidade dos factos, no caminho que levará à decisão justa. Dir-sei-ia que «os fins sempre justificam os meios».

Tomemos alguns exemplos: (i) o assassino renitente que após uma dura sessão de tortura acaba confessando os factos, descrevendo minuciosamente as circuntâncias em que terá cometido o crime; (ii) O ladrão que, coagido, vem a confessar o crime de furto, indicando a localização exacta dos bens furtados; (iii) os agentes policiais que, sem mandado de busca, invadem, à noite, domicílio alheio, vindo a descobrir efectivamente a existência de droga traficada; (iv) o marido que, sem autorização prévia, coloca o telefone de sua esposa sob escuta, vindo a comprovar por esse meio o adultério da mulher e exingindo, por consequência, o divórcio.

Em todos estes casos, temos um «material probatório» susceptível de sustentar as alegações dos sujeitos processuais, ou seja (i) o Ministério Público poderia suscentar a alegação do homicídio; (ii) o ofendido poderia provar o furto; (iii) a polícia poderia provar o tráfico de droga e (iv) o marido poderia obter o divórcio, provando o adultério da mulher.

Acontece, entretanto, que nos casos apontados, a actividade probatória (legalmente ordenada para a busca da verdade no processo) entra em choque com direitos do cidadão tutelados pela Lei, emergindo assim um conflito: justiça do processo vs direito do cidadão.

É que nos casos apontados, a prova obteve-se (i) mediante tortura; (ii) coação; (ii) abusiva intromissão no domicílio e  (iv) abusiva intromissão nas telecomunicações. Portanto, estamos diante de Provas Ilícitas.

Face a estes abusos, por um lado e considerando, por outro lado, que os tais abusos culminaram na efectiva descoberta da verdade e no conhecimento de infrações criminais, qual deve ser a atitude a tomar? Devem essas provas ser completamente desconsideradas, absolvendo-se por completo os infractores? Ou as provas serão consideradas válidas, punindo-se apenas os sujeitos que, na actividade de produção da prova terão cometido infracções? Entre o direito colectivo da comunidade política de ver as infracções criminais devidamente punidas e o direito do cidadão individual de não ser submetido a um processo cujas provas foram obtidas por meios ilícitos, onde se encotra o peso maior?

O artigo 65.º da nossa Consituição, já citado, parece querer fazer entender que no Direito Moçambicano a chamada prova ilícita é absolutamente vedada, não se verificando nenhuma situação excepcional em que a mesma pudesse validamente sustentar uma acusação. No plano da Constituição, entendo que o problema encontra-se devidamente colocado. Entretanto, pensar na aplicação absoluta do princípio da proibição da prova ilícita é uma utopia que até pode resvalar injustiça.

Em alguns casos, excepcionalmente, haverá que admitir a prova ilícita, dentro de um quadro restrito de critérios que não signifiquem grave violação ao ordenamento entendido como um todo. Uma análise do Direito Comparado, permite elencar pelo, menos quatro desses critérios/requisitos, a saber:

i) Imprescindibilidade - somente seria aceite a prova ilícita na condição de se demonstrar inequivocamente que no caso concreto não havia outro modo de demonstrar a realidade do facto ou que tal outro modo seria demasiado gravoso/custoso a ponto de até invialbilizar o direito da outra parte à prova;

ii) Proporcionalidade - no caso concreto, o bem objecto de tutela pela prova ilícita terá de se mostrar manifestamente mais digno de protecção do que o bem violado pela ilicitude da prova;

iii) Punibilidade - sempre que a conduta da parte que produz a prova ilícita for anti-jurídica, deverá ser aplicada a sanção correspondente;

iv) Utilização pro reo - no processo penal, o prova ilícita só será admitida se for a favor do réu.

Em Moçambique, o campo da prova prova ilícita, tanto se fale a nível legal quanto a nível doutrinário, carece de muita produção, de modo a aclarar inúmeras zonas de penumbra que ainda pairam. Uma reforma profunda do Código Penal e o de Processo Penal deverá debruçar-se expressamente sobre este assunto em particular, tendo em conta a importante disposição constitucional citada no início deste artigo e considerando a enorme produção doutrinária que pelo mundo já foi feita nesta matéria.

Num país em que boa parte dos casos de violação dos direitos humanos ocorre no decurso de instrução de processos judiciais, não será por mero «amor à investigação» que se deve reflectir sobre o instituto da Prova Ilícita.

O desafio lá está.

Um Abraço e até breve







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